Sangue e células sanguíneas  
Doutor Pedro Silva
Um ser humano adulto possui cerca de 5 litros de sangue. Este é constituído por plasma e células sanguíneas. O plasma é o componente líquido do sangue, e contém (além de água) proteínas, nutrientes, hormonas, sais e resíduos do metabolismo. Tem cor amarela, devido à presença de bilirrubina (proveniente da degradação dos hemos). As proteínas plasmáticas são sintetizadas pelo fígado, e desempenham uma grande variedade de papéis : transporte de moléculas importantes, manutenção da pressão osmótica e coagulação. As células sanguíneas
circulam suspensas no plasma e podem ser:
As células sanguíneas são produzidas na medula óssea a partir de células estaminais adultas que se diferenciam progressivamente sob controlo de diversos factores hematopoiéticos.
Coagulação
No caso de lesões de veias, a perda de sangue é relativamente lenta (devido à baixa pressão sanguínea) e pode frequentemente ser travada se a região afectada fôr elevada a um nível superior ao do coração. Se a hemorragia se der em direcção aos tecidos, a acumulação de sangue (hematoma) pode até elevar a pressão do fluido intersticial para os níveis de pressão sanguínea observados na veia, eliminando a saída de sangue.
As hemorragias provocadas pelo rompimento de artérias de médio ou largo calibre não são geralmente controláveis pelo organismo.. No entanto, os mecanismos fisiológicos de coagulação (ou hemostase) são bastante eficazes na resposta a lesões de vasos pequenos, que são as mais comuns na vida quotidiana.
A resposta imediata à lesão do vaso é a sua constrição, o que provoca a diminuição do fluxo sanguíneo na área afectada. Esta constrição pressiona as superfícies endoteliais do vaso uma contra a outra, induzindo um contacto que bloqueia o vaso. Porém, o fecho permanente da ruptura só pode ser realizado por estes mecanismos nos capilares mais finos, e a paragem da hemorragia depende de outros dois processos, que envolvem a actividade das plaquetas:
a formação de um rolhão plaquetário
A ruptura do vaso expõe o tecido conjuntivo subjacente. As plaquetas aderem ao colagénio presente neste tecido através de uma proteína plasmática secretada pelas células endoteliais e pelas plaquetas (o factor de von Willebrand). A ligação das plaquetas ao colagénio indu-las a libertar as substâncias presentes nas suas vesículas secretoras. Estas substâncias (serotonina, ADP, etc) actuam localmente sobre as próprias plaquetas, provocando alterações no seu metabolismo, forma e proteínas superficiais, num processo denominado activação das plaquetas. Algumas destas alterações fazem com que novas plaquetas adiram às iniciais, provocando a agregação das plaquetas (através de moléculas de fibrinogénio) e a formação do rolhão plaquetário. A adesão das plaquetas indu-las a secretar tromboxano A2, que estimula agregação adicional de plaquetas. O rolhão plaquetário pode selar pequenas quebras nos vasos. A sua expansão descontrolada é impedida pelo facto das células endoteliais sãs que rodeiam a lesão secretarem continuamente prostaciclina, que inibe a agregação plaquetária. O rolhão só se forma portanto onde existir lesão do vaso.
coagulação.
A lesão do vaso provoca a libertação (pelas células circundantes) da tromboplastina (também chamada factor tecidular, ou factor III. Esta proteína liga-se então a uma proteína plasmática, o factor VII, activando-o. Este novo complexo tromboplastina-factor VIIa * cataliza a activação dos factores X e IX. O factor Xa , na presença do factor Va, cataliza a transformação de protrombina em trombina, que quebra activa o factor XIII e transforma o fibrinogénio em fibrina. O factor XIIIa cria então ligações covalentes entre as moléculas de fibrina, que precipita e forma o coágulo, que bloqueia a lesão do vaso.
Esta via de coagulação é chamada via extrínseca, porque necessita de um factor (a tromboplastina) que não está originalmente presente no plasma. A coagulação do sangue observada quando se recolhe sangue para um tubo (e por isso na ausência de tromboplastina) explica-se pela actuação de uma segunda via (a via intrínseca). Inicialmente, o factor XII é activado por contacto com colagéneo, ou vidro. Este factor activa o factor XI, que activa o factor IX, que na presença de factor VIIIa activa o factor X . A partir deste ponto o mecanismo é igual ao observado na via extrínseca.
Em condições fisiológicas, a coagulação é iniciada pela via extrínseca. No entanto, o plasma contém um inibidor da via do factor tecidular, que inibe a activação do factor X pelo complexo tromboplastina-factor VIIa. A formação de trombina pela via extrínseca é portanto pequena. A coagulação é finalizada então pela via intrínseca: a pequena quantidade de trombina produzida pela via extrínseca activa os factores V, VIII e XI, que permitem o funcionamento da via intrínseca. Exceptuando os dois primeiros passos da via intrínseca, toda a sequência de coagulação requer a presença de Ca2+.
Além da presença do inibidor da via do factor tecidular, existem outras formas de controlo da coagulação. A trombomodulina, na presença de trombina, activa uma proteína (proteína C), que inactiva os factores VIIIa e Va. A trombina pode também ser inactivada pela acção conjunta da antitrombina III e da heparina.
Eventualmente, o coágulo deve ser dissolvido. Isto é realizado pelo sistema fibrinolítico. Tal como as vias de coagulação, este é constituído por uma grande sequência de proteínas que se activam sequencialmente, obtendo-se no fim a activação do plasminogénio em plasmina. A plasmina digere a fibrina, provocando a dissolução do coágulo.
Nota: a letra a em subscrito denota a forma activada dos factores de coagulação plasmáticos
Existem várias estratégias para terapia anticoagulante:
A aspirina inibe a ciclooxigenase (a enzima que sintetiza o precursor do tromboxano A2), inibindo portanto a agregação plaquetária.
anticoagulantes orais, que interferem com a actividade da vitamina K, que é necessária para a síntese de vários factores de coagulação (protrombina, VII, IX e X)
administração de heparina
bloqueadores do fibrinogénio, que interferem com a agregação das plaquetas.
administração de activadores do plasminogénio.
Resposta imunitária
A lesão dos tecidos por organismos patogénicos provoca a libertação de mensageiros químicos que provocam a vasodilatação em torno da região afectada, assim como o aumento da permeabilidade proteica dos capilares e vénulas nessa região. Isto causa difusão de proteínas plasmáticas e plasma para essa região (edema). À medida que o processo inflamatório avança, os neutrófilos circulantes (atraídos por moléculas quemotácticas, p. ex. os leucotrienos) aderem às células endoteliais da região afectada. Os neutrófilos acumulam-se portanto em torno da região afectada, em vez de serem arrastados pela corrente sanguínea. Seguidamente os neutrófilos deslocam-se através dos interstícios existentes entre as células endoteliais e migram para o fluido intersticial - diapedese. Também os monócitos migram para o fluido intersticial e uma vez lá chegados transformam-se em macrófagos. Começa então o processo de fagocitose do patogéneo, iniciado pelo contacto da célula fagocítica (neutrófilo ou macrófago) com os lípidos e carboidratos das paredes celulares bacterianas. Este contacto é favorecido por substâncias secretadas pelo organismo, e denominadas colectivamente por opsoninas. O fagócito envolve a célula invasora, e após endocitose desta ataca-a com os seus lisossomas, que a degradam através das suas enzimas hidrolíticas. Outras enzimas envolvidas no processo libertam substâncias oxidantes extremamente activas de elevada toxicidade (NO, peróxido de hidrogénio, hipoclorito).
Um conjunto de proteínas plasmáticas denominado complemento (e que se activam mutuamente numa sequência análoga à dos factores de coagulação) é também capaz de levar a cabo a destruição extracelular de patogéneos. O complemento é activado em resposta à infecção, e leva à formação de um complexo de ataque membranar (MAC), capaz de se integrar na membrana do patogéneo e de formar um canal por onde água e electrólitos entram, provocando a sua lise. Alguns dos componentes do complemento podem também actuar como opsoninas.
Os mecanismos descritos acima são não-específicos. A imunidade específica (responsável por exemplo pela imunização) depende da actuação de moléculas (as imunoglobulinas) capazes de reconhecer marcadores moleculares específicos da célula invasora (os antigénios). As imunoglobulinas são produzidas pelos linfócitos e contêm zonas constantes e extremidades variáveis (e hiper-variáveis) - responsáveis pela ligação selectiva aos antigénios. O processo da sua síntese envolve o rearranjo aleatório dos genes das imunoglobulinas em cada linfócito. Cada linfócito produz por isso uma só imunoglobulina, diferente da dos outros linfócitos. Quando um linfócito reconhece um antigénio, é activado e entra em divisão acelerada. Cada célula filha será específica para o mesmo antigénio reconhecido pela suma "célula-mãe". Após activação, alguns linfócitos iniciam a resposta imunológica, e outros ficam de reserva como memória imunológica. Existem três tipos de linfócitos:
linfócitos B - amadurecem na medula óssea. Após activação, diferenciam-se em plasmócitos, que secretam imunoglobulinas para corrente sanguínea. Estas imunoglobulinas solúveis denominam-se anticorpos
linfócitos T -são sintetizados na medula óssea, mas amadurecem no timo. Podem ser de dois tipos:
CD8 (ou células T citotóxicas) - Após activação, ligam-se ao seu alvo através das suas imunoglobulinas e secretam substâncias letais. As respostas mediadas por estes linfócitos são dirigidas contra as células do próprio organismo que se tenham tornado cancerosas ou infectadas por vírus (ou microorganismos que, tal como os vírus, se tenham incorporado nas células).
CD4 (ou helper T cells) - Após activação secretam citoquinas, que são essenciais para o funcionamento adequado dos linfócitos B, células NK e linfócitos T citotóxicos.
natural killer (NK) cells -tal como os linfócitos CD8, atacam células cancerosas ou infectadas por vírus. No entanto, não reconhecem especificamente os seus alvos, por não possuirem imunoglobulinas. Reconhecem as zonas constantes dos anticorpos solúveis que se ligaram à célula alvo. Por isso necessitam da intervenção dos plasmócitos, que secretam esses anticorpos.
Além das funções já mencionadas, os anticorpos podem também desencadear outro tipo de mecanismos: podem activar o sistema de complemento, provocando a lise específica do patogéneo, podem complexar toxinas (formando eventualmente "redes" anticorpo-toxina-anticorpo-toxina-etc. ) para permitir a sua fagocitose e podem actuar como opsoninas.
Grupos sanguíneos
A superfície dos eritrócitos possui elevado número de glicoproteínas, agrupadas em famílias que se denominam "grupos sanguíneos". Os mais importantes são o sistema ABO e o sistema Rhesus.
Sistema ABO - Inclui o carboidrato H e duas variantes parecidas com esta, que se chamam A e B. Um indivíduo pode ser por isso A, B, AB ou O (se só tiver o carboidrato H). Cada indivíduo possui naturalmente anti-corpos específicos para os carboidratos que não possui. Assim, um indivíduo A possui anticorpos anti-B, un indivíduo O possui anticorpos anti-B e anticorpos anti-A, e um indivíduo AB não possui nenhum dos anticorpos. (Não existem anticorpos anti-H, provavelmente porque o carboidrato H é muito semelhante quer ao A quer ao B, e um anticorpo anti-H reagiria com os antigénios A e B). Numa transfusão, os anticorpos do dador diluem-se rapidamente na corrente sanguínea do receptor, e os efeitos de compatibilidade (ou incompatibilidade) manifestam-se devido à interacção dos anticorpos do receptor e dos antigénios presentes no sangue do doador. Se o receptor possui anticorpos específicos para os eritrócitos do doador, estes aglutinarão (unidos entre si pelos anticorpos do receptor) e poderão formar um trombo.
Sistema Rhesus - caracterizado pela presença ou ausência do antigénio D. Ao contrário do sistema ABO, um indivíduo sem o antigénio D não possui anticorpos anti-D se nunca tiver sido exposto ao antigénio. Apenas os produz após contacto. isto torna-se importante nas interacçõs mãe-feto. Durante o nascimento de um bebé, a ruptura dos vasos sanguíneos da placenta provoca o contacto entre os sangues da mãe e do bebé. Se a mãe fôr Rh- e o bebé Rh+, isto significa uma exposição da mãe ao antigénio D, e ela começará portanto a sintetizar anticorpos anti-D. Numa gravidez seguinte, estes anticorpos podem atravessar a placenta e provocar a aglomeração e destruição dos eritrócitos de um bebé Rh+. Isto pode provocar anemia grave do bebé, e mesmo a morte. Actualmente, impede-se este fenómeno administrando à mãe Rh- anticorpos anti-D logo que nasce o bebé Rh+. Estes anticorpos ligam-se aos antigénios D dos eritrócitos do bebé que estejam em circulação no sangue da mãe, impedindo que induzam a síntese de anticorpos por parte da mãe. O sistema ABO não provoca este tipo de problemas porque os anticorpos produzidos são do tipo IgM, demasiado grande para atravessar a placenta.
Bibliografia recomendada: